Carta de Homenagem ao Professor David, por Henrique Lee (UFMT)

Para meu amigo David

Tive o grande prazer e privilégio de ter a amizade e companhia intelectual do professor David Victor-Emmanuel Tauro. Sua partida no sábado dia 27/04/2024 deixou amigos, colegas, ex-alunos e orientandos em estado de consternação. Deixo aqui algumas imagens, alguns clarões e fulgores, pequenos fragmentos de convivência que eu gostaria de guardar. David vinha enfrentando problemas de saúde já há um tempo, mas mesmo com todos os contratempos da saúde frágil, seguiu trabalhando até o fim, sendo que já tinha plenas condições de se aposentar. Eu o conheci por intermédio da professora Inara Leão, sua colega da UFMS, que em sua vinda a uma reunião da ABRAPSO realizada na UFMT em 2013, esteve presente em uma mesa redonda na qual apresentei um trabalho em que eu examinava certas contribuições da teoria do Imaginário radical em Cornelius Castoriadis para uma teoria da ficção em Wolfgang Iser. Ao final da mesa a professora Inara me disse que talvez eu teria muito o que conversar com um colega seu que era um grande especialista em Castoriadis. Ela me contou rapidamente sobre o David e me passou seu endereço de e-mail. A professora Inara estava certa, logo na sequência escrevi para o David que me recebeu de forma muito acolhedora, a mim que era um colega recém ingressado, um novato. Eu vinha da teoria literária e tinha descoberto a obra de Castoriadis recentemente, há uns 2 anos, e vinha me debatendo solitariamente com sua obra. Então, basicamente iniciamos uma intensa comunicação na qual ele me servia de guia nos labirintos da obra desse autor transdisciplinar e orientado pelas diversas possibilidades de construção da autonomia. A partir disso, David me fez diversos convites para ser membro na banca de seus orientandos, e foi se construindo uma amizade com ele e outros colegas do programa de pós-graduação em Psicologia como a professora Inara Leão, o professor Antônio Osório e a professora Zaira. Foi um período de grande aprendizado, à época não tínhamos o nosso programa de pós em Psicologia da UFMT, mas já tínhamos entre nós os colegas da UFMT o germe desse desejo sendo gestado, o que ocorreria 4 anos mais tarde.

O mundo de David era fascinante. Entre essas diversas idas a Campo Grande, David me recebeu algumas vezes na sua própria casa. Conversar com ele e sua esposa, a professora Idinaura, nessas ocasiões e assistir as conversas entre eles me proporcionaram as mais interessantes aulas sobre Marxismo, sobre a história da URSS, Filosofia e Antropologia. Esses temas eram apresentados de um ponto de vista absolutamente pessoal e criativo e tinham entrelaçamento direto com sua vida pessoal: sua filiação ao partido comunista na sua juventude na Índia, que quase lhe custou a vida e alguns ossos da face fraturados resultantes de agressão policial, sua migração para Inglaterra, para França e mais tarde para o Brasil. Essas conversas começavam na mesa de jantar e mais tarde se encaminhavam, invariavelmente, para sua vasta biblioteca. Eu não deixava nunca de me surpreender com sua capacidade e velocidade para encontrar, naquele mar revolto de papéis, um livro e a passagem específica que queria para elucidar uma fala que acabara de fazer. O gesto em si já era extraordinário e somava-se a isso o fato de que àquela altura da noite ele já acumulara algumas garrafas de vinho e um par de ganjas. A prodigiosa memória e agilidade mental do nosso amigo era invejável. Ao final dessas conversas ele geralmente me separava uma pilha de livros, que ocupavam o limite da minha bagagem de mão, dizendo que eu poderia ficar com eles o tempo que precisasse. Confesso que ao ver os livros me causava apreensão a ideia de ficar responsável por tão raros exemplares. Certa vez, por curiosidade, ainda na presença David, fiz uma busca em sebos online só para se ter uma ideia do valor dos livros que eu estava transportando, não posso revelar esse valor, pois David desaprovaria uma atitude dessas, mas posso dizer que foi o suficiente para entender que eu não deveria deixar, sob hipótese alguma, que a bagagem de mão fosse despachada. Mas David não demonstrava qualquer preocupação com os raros exemplares que ele me emprestava, sua única preocupação é que me fossem úteis. Essa generosidade era generalizada, assim era também com os discentes e orientandos. Não era incomum vê-lo, mesmo que tentasse fazê-lo muito discretamente: desembolsar um dinheiro de passagem para um aluno aqui ou acolá, pagar com seu cartão de crédito uma prestação de um celular para um outro, passar na farmácia para levar fraldas para uma aluna que assistia ‘a suas aulas com sua filha de 8 meses no colo, inventar trabalhos, dos quais pouco precisava, só para justificar o pagamento de um discente. Na mesma medida da sua generosidade vinha também uma franqueza desconcertante. A sua franqueza parecia a mim funcionar como uma espécie de filtro para suas relações, pois só seriam capazes de se relacionar com ele – profissional, acadêmica e pessoalmente – aqueles que conseguissem levar adiante a relação após sobreviver a sua forma direta e sem rodeios de expressar suas críticas a um determinado trabalho. Vemos essa marca principalmente nas resenhas em que escreveu para livros dos colegas. Tudo isso era feito com muita cortesia e urbanidade, sempre valorizando os pontos que considerava positivos, mas sem poupar o interlocutor de ter contato com aquilo que ele considerava ser as fragilidades de um determinado trabalho, fala ou posição.

Um outro tópico frequente em nossas conversas era sobre a vida e o ofício de professor e revisitar essas conversas me faz constatar que a sua partida, além de representar a perda de um amigo, representa também, ao menos para mim, o fim de um estilo de docência universitária e de um modo de encarar este ofício. David, como todos sempre souberam, se recusava a entrar na lógica produtivista de burocratização da produção de conhecimento. No entanto, carregava consigo algumas contradições, das quais era bem ciente. Para minha surpresa, ele defendia que, de certa forma, o professor universitário deveria sim realizar trabalho administrativo e burocrático, sob o argumento de que além de ser uma das formas de por fim uma divisão do trabalho nefasta dentro da universidade, poderia a ensinar a diversos colegas seus um pouco mais de solidariedade ao trabalho dos técnicos e servidores, que na sua opinião eram tratados com soberba e distanciamento por alguns de seus colegas docentes. Com esse espírito foi coordenador reeleito de ensino e graduação na sociologia. Contudo, sabia também que no contexto em que era empreendido esse desvio de função o objetivo era apenas maximizar as atribuições dos docentes e servidores ativos para evitar ao máximo novos concursos públicos.

Na esteira de sua não conformidade ao sistema burocrático de mensuração da produtividade docente, tinha uma constante preocupação de não inflar desnecessariamente o mundo com discursos e textos que não constituíssem contribuições efetivas. Escrevia apenas o que lhe parecesse realmente necessário e imprescindível, apesar do volume vertiginoso de anotações e rascunhos. Em alguns de seus rascunhos, que ainda assombram minha caixa de e-mails, os textos mesclavam francês e inglês, com a tradução em andamento para o português, que era a sua quarta língua. Isso fazia de David um mestre da oralidade, era nas suas intervenções orais que tínhamos a chance de ver seu pensamento em plena potência. Tive a chance de acompanhar algumas aulas de David na graduação e na pós. Em ambas as modalidades mantinha o mesmo nível. A sala de aula era um espaço sagrado para David, que levava muito a sério, mas sem perder o humor e a ternura jamais. Sobretudo, ele levava muito a sério o que os seus estudantes diziam, realizava um esforço sempre honesto de responder às questões colocadas, por mais absurdas que pudessem parecer. Digo “parecer”, porque David tinha essa capacidade de tornar uma pergunta aparentemente deslocada e sem contexto em uma questão filosófica profunda em relação com o tema da aula. Era um iconoclasta, questionava tudo, inclusive a sua própria autoridade em sala de aula. Em certa ocasião, eu havia chegado de Cuiabá bem cedo e estava trabalhando em meu computador numa sala do programa de pós, finalizando detalhes da arguição de uma banca que seria realizada no dia seguinte. Ele passara por ali para me dar um oi. Eu o vi com olheiras profundas e semblante abatido. Perguntei como ele estava se sentindo, ele se declarou indisposto e com dor de cabeça. A despeito das minhas recomendações de que fosse para casa e se cuidasse, ele foi para sua aula na graduação em Ciências Sociais, ao fim da aula, quando fui encontrá-lo, ele dizia estar curado da sua indisposição e realmente parecia bem mais animado. Não seria apenas um exagero de minha parte dizer que a sala de aula o havia curado, como seria, certamente, uma observação altamente criticável, pois se trata, em alguma medida, de uma romantização absurda da exploração e precarização do trabalho do professor. Mas quanto a isso, eu sinto muito, não há nada que eu possa fazer, David era, com todas as contradições que isso acarreta, um romântico incurável.